segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

“Ai de mim, se for amor, como atormenta. ”

Li no Google que o termo "Platônico" vem de Platão e é utilizado justamente porque o filósofo grego acreditava na existência de dois mundos - o das idéias, onde tudo seria perfeito e eterno, e o mundo real, finito e imperfeito.

No mundo de Platão, o amor é idealizado. Um amor à distância, que não se aproxima, não toca, não envolve... Fica ali, só olhando, vigiando, fantasiando. A musa escolhida não sofre de TPM nem de complexo de gordura. E também não tem a cobrança do retorno. Você não deve nada ao ser amado. Tudo é no SEU tempo, do SEU jeito, no SEU gosto.

Mas de que vale essa perfeição se o que sobra no final é a saudade de algo que você nunca teve? Como é possível amar tanto sem ter um abraço, um carinho, o rir junto, o dormir junto?

E aí eu sou apresentada ao nosso jornalista às vésperas de seus 90 anos.

“Quando o aguaceiro passou eu continuava com a sensação de que não estava sozinho na casa. Minha única explicação é que da mesma forma que os fatos reais são esquecidos, também alguns que nunca aconteceram podem estar na lembrança como se tivessem acontecido. Pois se evocava a emergência do aguaceiro não me via a mim mesmo sozinho na casa, mas sempre acompanhado por Delgadina. Eu a havia sentido tão perto durante a noite que sentia o rumor de seu respirar no quarto de dormir, e a pulsação de sua face em meu travesseiro. Só assim entendi que tivéssemos podido fazer tanto em tão pouco tempo. ”
...
“Desde então a tive na memória com tamanha nitidez que fazia dela o que queria. Mudava a cor de seus olhos conforme o meu estado de ânimo: cor de água ao despertar, cor de açúcar queimado quando ria, cor de lume quando a contrariava. E a vestia para a idade e a condição que convinham às minhas mudanças de humor: noviça apaixonada aos vinte anos, puta de salão aos quarenta, rainha da Babilônia aos setenta, santa aos cem. Cantávamos duetos de amor de Puccini, boleros de Agustín Lara, tangos de Carlos Gardel, e comprovávamos uma vez mais que aqueles que não cantam não podem nem imaginar o que é a felicidade de cantar. Hoje sei que não foi uma alucinação, e sim um milagre a mais do primeiro amor da minha vida aos noventa anos. ”

Não parece irônico que o primeiro amor assim tão tardio, se torne também o último?

“Havia achado, sempre, que morrer de amor não era outra coisa além de uma licença poética. Naquela tarde, de regresso para casa outra vez, sem o gato e sem ela, comprovei que não apenas era possível, mas que eu mesmo, velho e sem ninguém, estava morrendo de amor. E também percebi que era válida a verdade contrária: não trocaria por nada neste mundo as delícias do meu desassossego... Passei uma semana inteira sem tirar o macacão de mecânico nem de dia nem de noite, sem tomar banho, sem fazer a barba, sem escovar os dentes, porque o amor me mostrou tarde demais que a gente se arruma para alguém, se veste e se perfuma para alguém, e eu nunca tinha tido para quem”

3 comentários:

katy disse...

o amor platônico até parece bonito, mas eu prefiro o real, com todas as suas imperfeições. e se for pra morrer.... que seja na cama!!!! rssss bjs cris.

Cris disse...

Kakaka... perfeito. platônico por platônico, eu continuo esperando pelo Banderas

simone gallego disse...

na perspectiva de contribuir, o final da citação do garcia marques é a transcrita na sequência (que se inicia logo após "desassossego"): "Havia perdido mais de quinze anos tratando de traduzir os cantos de Leopardi, e só naquela tarde os senti a fundo: Ai de mim, se for amor como atormenta."